Senti
uma vontade fudida de fumar um cigarro, escondido na escada de incêndio do
terceiro andar do Hospital de Base. Senti uma saudade fudida da boca dela,
vermelha, carnuda, aqueles olhos grandes. Andei pela w3 devagar, 60 por hora,
farol alto ligado. Caia uma chuva fraca, arco-íris. Ônibus são como o DNA de
uma cidade, glóbulos, lactobacilos vivos em movimento constante. Sabemos onde
estamos pela cor de seus coletivos. Queria chegar lá de madrugada, bater na porta e dizer, te amo porra.
Mas ela ia ficar puta pra caralho comigo. A noite vem devagar, como é de
costume no verão. Caminho sereno, de volta pra cela, a casa dos oprimidos. É um
presente, a solidão. Me fez mais forte, frio, resistente. Agradeço ao pai por
isso. Claro, não vou durar muito. No corredor, caminho sem vontade de chegar.
Puxo o corrimão pra aliviar a pressão na perna detonada. Não sinto nada, nem
culpa, nem dor, ou rancor. Gratidão pelos bons dentes e pelos quatro anos de
leite materno. Fim de expediente, cansaço; no rosto dos operários que deixam o
prédio, vejo medo, mas também vejo chuva e fé nos seus olhos. Sobrevivendo como
dá. Igual eu. Qual seu objetivo hoje? Penso, enquanto olho fixamente por alguns
segundos no fundo dos olhos da moça uniformizada. Que te beijem hoje, como se o
mundo fosse acabar amanhã. Mentalmente, desejo-lhe em segredo. Lavo as mãos e
fecho a torneira com o cotovelo esquerdo, igual eu vi na série de TV. Caminho
até o pai sem pressa, não lamento. Está quase livre, falta pouco. Não se
arrepende. Já pensou se for uma viagem de corcel amarelo pelo litoral? De um
lado da estrada, o mar; do outro, a mata. Trilha sonora? O rei, James Taylor ou
Cat Stevens. A costura do banco de couro preto incomoda um pouco, não dá pra
dormir, mas é bonito pra caramba. O som suave do motor, o vento lança o cabelo
castanho pra trás. Refletida nos óculos redondos, a luz do sol torna
esverdeadas as lentes grossas. Sem pressa, aproveita a viagem.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
quarta-feira, 3 de janeiro de 2018
O pai
Como descrever aqueles dias que você envelhece muito em poucas horas? Vou até o espelho, meu olhar tá diferente, vivo, cheio de amor e ódio. Da porta entre aberta, atravessa a luz que ilumina o pequeno quarto, a claridade fria de um azul suave reflete em um dos olhos do pai, olho agora de criança, mãos que acariciam os lençóis frescos, como se vagueasse pela pele do mais lindo e desejado Ser. Mas de braços amarrados não se chega ao sumo. Quando finalmente adormece, o medo se vai, tudo é perdoado dentro do sonho do sono profundo dos acamados e dos enfermos de amor. No corredor vazio da casa dos oprimidos, o som distante da TV lembra-me que sou brasileiro e tenho pés. Espero o Sol pra dormir, Marcus as cem miligramas pra esquecer. O rinoceronte foi embora, as camas vazias tem cheiro de morte, o pescador e seu hino, do Infante Raul, cicatriza longe daqui. Aquela que já foi bela anda pelo corredor pra suprir o tesão de tabaco e carinhos, seu zumbido loiro invade a madrugada, enquanto no pequeno radio do doente do quarto ao lado, Madredeus toca. Lembrei de quando passei a noite brincando com as ferramentas do pai, os alicates, eram os gigantes e as pequenas chaves de boca, os homens. O momento mais simples, o mais feliz, melhora as coisas que não podem melhorar. Será que trepou com todas as mulheres que amou? Nada sabemos dos carinhos que faltaram, só conseguimos ter certeza dos massacres que sofremos, enquanto tentamos viver a vida que não sonhamos.
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