domingo, 14 de junho de 2020

Crônica por encomenda


Aprendeu a correr antes de andar, cedo precisou de óculos e não fala mais dos seus sonhos.
Lembra guando dançávamos em pé na cama quando o filme acabava e tocava a música dos créditos finais? Imaginávamos mais.
Hoje é menos sincera comigo, do que naquele tempo que você dormia no meu peito e dizia que a mamadeira da sua mãe era melhor que a minha. Eu achava engraçado.
Sinto que contribuo com a solidão da mulher preta, no momento que percebi que não conseguia mais te carregar no colo até a cama, quando adormecia no banco de trás do carro à caminho de casa.
Morro um pouco a cada tentativa de estraçalhar por dentro o projeto midiático de sociedade homogênea. Sim. Escrevo Projeto com p minúsculo, porque estratégias covardes, que buscam exterminar todos que não se adequam ao modelo de mundo, que a elite ressentida sonha, não merecem ser substantivo próprio.
O poeta previu que você viria, estridente e ansiosa como as borboletas aprisionadas no frio borboletário. Voar ou morrer.
Aguardo que encontre suas paixões pra me apaixonar de novo e mais uma vez tatear os livros infantis, aqueles com meninas fortes, princesas que peidam e viagens de balão.
Respira meu amor. Você não se ajoelha. Eu sei. Mas mostra as mãos, não faça movimentos bruscos e me liga de vez em quando. Eles estão com medo e andam em círculos. O medo é o sentimento mais perigoso do mundo, porque leva ao ataque, ao equívoco. Não deixe qualquer um ver sua dor, mas abrace. Os medos dos outros, tem medo do seu abraço. Entenda que isso é um dom, use com sabedoria e muita responsabilidade.
Popstar, veterinaria, ajudante do padre, tudo que você quis ser, eram sombras formidáveis da minha e da sua necessidade de encontrarmos a justiça e a felicidade no mundo, inalcançáveis na sua totalidade, porem, onde chegarmos na busca por virtudes tão raras, também é felicidade, também é justiça. Aquele saco de feijão que compramos pra mulher na fila do mercado? E daí se nós erramos. Se ela trocou por craque, nunca saberemos. Nós dividimos e isso é revolucionário de alguma forma. Deus se disfarça de uma criança pobre e com fome pra testar nossa bondade. As vezes me pergunto, quem se disfarça de uma mulher preta, pobre, com fome?
Acredita que um dia desses, me deu uma vontade danada de brincar com você de salão de beleza e desfile de moda, com as barbes descabeladas e sem roupa?
Hoje você não gosta tanto assim de cães, mas saiba que quando morremos, aqueles que foram nossos amigos em vida, saem do céu dos cachorros, com grandes plantações de pés de salsicha, para nos dar as boas vindas.
Aqui no planeta dos caretas, somos todos vagabundos, bichas e maconheiros. Mas quando a Nave vier nos buscar, seremos Sol. Assim mesmo, com letra maiúscula, totalmente substantivo próprio.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A primeira lona de circo de maio


Vejo muita beleza nas relações de educação horizontal, me encanto com o talento de contextualizar todas as inteligências que nos foram presenteadas, às vezes por mágica, outras por dor, suor, muita erva e cerveja. Aprendo como que por um delírio extremo e subversivo, mestres, mentores sobrevoam minha cabeça, danço com os olhos em chamas, durmo pouco, sigo em frente. Um dia me disseram que sabemos quem realmente é uma pessoa, pela maneira que ela trata aqueles que não podem lhe dar nada. Mas veja bem senhoras e senhores, somos dois interesseiros, não sei o que ele quer de mim, eu, sorrateiramente roubo-lhe a habilidade: "CAVALEIRO DE LA MANCHA", que do alto de suas pernas de pau, subjuga falsos gigantes e dragões contemporâneos, cafonas, sem ética, intolerantes. Quero essa capacidade de enxergar a ternura acima da média, na primeira lona de circo e na última chuva de maio, preciso desses super poderes pra mudar o mundo, se não, não vou aguentar por muito tempo. Imaginar é urgente e estudar é a única maneira realmente eficaz de manter-se eternamente jovem e atraente. Mas não quero ser amado pela simetria dos meus olhos em relação à cabeça, quero ser amado, como amo Piantino. Por causa do arrebatamento de seus sonhos perfurantes cor púrpura, em verso, métrica, rima, sol maior e flor. Ei, Caçador de Nascentes. A meta é ter um quarto da sua coragem, pra não quebrar a divina promessa, de jamais me tornar um clichê ambulante. Ainda perambulo pelos bares, já consigo dançar sem bourbon, minha filha cresce sem mim. Mas estamos evoluindo, são só três notas, elas são as mais simples. Mas com essas três notas é possível tocar sessenta e sete músicas diferentes e mais de um milhão de possibilidades. Se a felicidade existe eu não sei, mas podemos descobrir o que é essa tal alegria de viola.

Imagem: Still do filme I CLOWNS de Federico Fellini


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Tese onze


Ouça, é o trem. Ele passa de madrugada, sempre no mesmo horário, quando escuto seu som distante, me imagino no vagão, de janela aberta pra aliviar o calor. Meio clichê, eu sei. Nunca andei de trem, não tive tantas experiências sexuais como pensam os que me julgam leviano, falo menos do que eu gostaria e parece que estou ficando fora de moda. Mas ta tudo bem, prefiro assim, analógico, ser eu mesmo, doa o que doer. Acredito que perdemos essa batalha. Sufocam nossa ternura com frieza, vagarosamente. Sim uma vida vale menos que um celular. Desistiram dos moleques, desistimos daquela vida mais perto do mar. Marighella disse pra manter o corpo forte e estar sempre preparado. Na trincheira que me cabe, faço o que sei fazer, faço o melhor que posso e aprendo. Lembra eu e você de mãos dadas marchando com o circo até o Palácio? Tocava sucessos tropicalistas na charanga improvisada. Você gostava mais do trompete com abafador, eu não soltei sua mão e ali, decidimos por salvador. Uma banda, um filme, aulas de desenho, talvez um bar, uma pousada, sem cachorro,  só nossos filhos. Agora tudo mudou. Porem não temos mais medo. Estudar da coragem. Ciências sociais afasta a vaidade, muda as perspectivas e surge essa ganância incontrolável de salvar mais e mais vidas, ambição de mudar o mundo, de ser foda sem ninguém precisar saber. Com você evoluo. É charmosa. Amo seu gosto musical, teu jeito de andar, olhar e a maneira incrível que movimenta as mãos e sorri quando vislumbra lindas metodologias pra se alcançar a justiça social. Queria mesmo era te dar um país. O que achou do Huxley? Eu não sei como sobrevivi tanto tempo sem a filosofia, sem tentar entender, mas admito que é mais seguro ir devagar, aos poucos. Sabe a Tese onze do Marx? É mesmo a coisa mais linda, simples e certa que já foi escrita e sinceramente, não sei se é defeito ou virtude, mas sempre misturo amor e política. Não consigo evitar.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Corcel um

Senti uma vontade fudida de fumar um cigarro, escondido na escada de incêndio do terceiro andar do Hospital de Base. Senti uma saudade fudida da boca dela, vermelha, carnuda, aqueles olhos grandes. Andei pela w3 devagar, 60 por hora, farol alto ligado. Caia uma chuva fraca, arco-íris. Ônibus são como o DNA de uma cidade, glóbulos, lactobacilos vivos em movimento constante. Sabemos onde estamos pela cor de seus coletivos. Queria chegar lá de madrugada, bater na porta e dizer, te amo porra. Mas ela ia ficar puta pra caralho comigo. A noite vem devagar, como é de costume no verão. Caminho sereno, de volta pra cela, a casa dos oprimidos. É um presente, a solidão. Me fez mais forte, frio, resistente. Agradeço ao pai por isso. Claro, não vou durar muito. No corredor, caminho sem vontade de chegar. Puxo o corrimão pra aliviar a pressão na perna detonada. Não sinto nada, nem culpa, nem dor, ou rancor. Gratidão pelos bons dentes e pelos quatro anos de leite materno. Fim de expediente, cansaço; no rosto dos operários que deixam o prédio, vejo medo, mas também vejo chuva e fé nos seus olhos. Sobrevivendo como dá. Igual eu. Qual seu objetivo hoje? Penso, enquanto olho fixamente por alguns segundos no fundo dos olhos da moça uniformizada. Que te beijem hoje, como se o mundo fosse acabar amanhã. Mentalmente, desejo-lhe em segredo. Lavo as mãos e fecho a torneira com o cotovelo esquerdo, igual eu vi na série de TV. Caminho até o pai sem pressa, não lamento. Está quase livre, falta pouco. Não se arrepende. Já pensou se for uma viagem de corcel amarelo pelo litoral? De um lado da estrada, o mar; do outro, a mata. Trilha sonora? O rei, James Taylor ou Cat Stevens. A costura do banco de couro preto incomoda um pouco, não dá pra dormir, mas é bonito pra caramba. O som suave do motor, o vento lança o cabelo castanho pra trás. Refletida nos óculos redondos, a luz do sol torna esverdeadas as lentes grossas. Sem pressa, aproveita a viagem. 


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O pai


Como descrever aqueles dias que você envelhece muito em poucas horas? Vou até o espelho, meu olhar tá diferente, vivo, cheio de amor e ódio. Da porta entre aberta, atravessa a luz que ilumina o pequeno quarto, a claridade fria de um azul suave reflete em um dos olhos do pai, olho agora de criança, mãos que acariciam os lençóis frescos, como se vagueasse pela pele do mais lindo e desejado Ser. Mas de braços amarrados não se chega ao sumo. Quando finalmente adormece, o medo se vai, tudo é perdoado dentro do sonho do sono profundo dos acamados e dos enfermos de amor. No corredor vazio da casa dos oprimidos, o som distante da TV lembra-me que sou brasileiro e tenho pés. Espero o Sol pra dormir, Marcus as cem miligramas pra esquecer. O rinoceronte foi embora, as camas vazias tem cheiro de morte, o pescador e seu hino, do Infante Raul, cicatriza longe daqui. Aquela que já foi bela anda pelo corredor pra suprir o tesão de tabaco e carinhos, seu zumbido loiro invade a madrugada, enquanto no pequeno radio do doente do quarto ao lado, Madredeus toca. Lembrei de quando passei a noite brincando com as ferramentas do pai, os alicates, eram os gigantes e as pequenas chaves de boca, os homens. O momento mais simples, o mais feliz, melhora as coisas que não podem melhorar. Será que trepou com todas as mulheres que amou? Nada sabemos dos carinhos que faltaram, só conseguimos ter certeza dos massacres que sofremos, enquanto tentamos viver a vida que não sonhamos.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Boca

O vento passa estreito pela janela quase completamente fechada, explode o som triste da brisa. Fiquei sem fôlego, afrouxo o sinto, solto o cadarço. A inspiração não vem. Se não crio não tenho ar.
Sozinho.
O vento outra vez. Agora misturasse à discreta sirene e o timbre vivo da voz do jovem inquieto do leito quatro. O diabético, o agricultor, o pescador poeta, o professor enfermeiro, o artista. Adormeço. Meus dedos acariciam a pele suave das costas. Desperto. Minha realidade. "Você não pode ser." To no limite, evitar a dor, evitar dolorir. Mereço mesmo a felicidade? Me peguei discursando utopias na enfermaria.
Mundo bom.
Disse o doente, cheio de esperança. Trocar peixe por poesia, parar um pouquinho só pra ver o Sol sumir na água, pegar o fruto no pé, plantar, nunca mais ter que matar.
Um cigarro, o ultimo Wiske e a boca mais bonita. Os dedos percorrem a pele suave das costas outra vez. Dorme aqui hoje, amanhã segue sem mim, aproveita o sol e se cuida. Tenho que dar o tapa na cara do pai. Te encontro depois em algum lugar da América, ou continuo sem nada. Hoje, somos só você e eu. 

O salvador

Hoje vi um louco de cristo, proclamando sem fé, clichês bíblicos, soou como poesia ou política, para a rasa compreensão dos consumidores vorazes do varejão dominical.
O que passa na sua cabeça?
Pensei comigo mesmo.
Em que momento esse homem sentiu que tinha que protestar.
Será que loucos são os que não param para ouvi-lo?
E se Deus fala com esse único solitário miserável?
Olha Maria, todos meus beijos são de verdade, minha saudade corta. Vamos ficar juntos pra sempre. Desculpa o dia que não fiz seu sanduíche de queijo. E quando dormi, porque não via nenhuma saída. Você sempre soube qual era a saída. É você. Eu estive acovardado,  agora temos o tempo pra recuperar, eu não tenho mais medo e vamos andar de cabeça erguida, como sempre andamos.
Salvador Dalí está na cidade, podemos ver os quadros e tentar desenhar um mundo parecido, que as regras são as nossas.