quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

O pai


Como descrever aqueles dias que você envelhece muito em poucas horas? Vou até o espelho, meu olhar tá diferente, vivo, cheio de amor e ódio. Da porta entre aberta, atravessa a luz que ilumina o pequeno quarto, a claridade fria de um azul suave reflete em um dos olhos do pai, olho agora de criança, mãos que acariciam os lençóis frescos, como se vagueasse pela pele do mais lindo e desejado Ser. Mas de braços amarrados não se chega ao sumo. Quando finalmente adormece, o medo se vai, tudo é perdoado dentro do sonho do sono profundo dos acamados e dos enfermos de amor. No corredor vazio da casa dos oprimidos, o som distante da TV lembra-me que sou brasileiro e tenho pés. Espero o Sol pra dormir, Marcus as cem miligramas pra esquecer. O rinoceronte foi embora, as camas vazias tem cheiro de morte, o pescador e seu hino, do Infante Raul, cicatriza longe daqui. Aquela que já foi bela anda pelo corredor pra suprir o tesão de tabaco e carinhos, seu zumbido loiro invade a madrugada, enquanto no pequeno radio do doente do quarto ao lado, Madredeus toca. Lembrei de quando passei a noite brincando com as ferramentas do pai, os alicates, eram os gigantes e as pequenas chaves de boca, os homens. O momento mais simples, o mais feliz, melhora as coisas que não podem melhorar. Será que trepou com todas as mulheres que amou? Nada sabemos dos carinhos que faltaram, só conseguimos ter certeza dos massacres que sofremos, enquanto tentamos viver a vida que não sonhamos.