O chuveiro hoje me parece o lugar mais seguro, quando a água quente cai sob a cabeça, que queima o cabelo, escore pelos olhos e obriga-me a manter-los fechados, nesse momento sou consumido por uma espécie de transe, envolvido pela água escaldante, como Dante de Alighieri a caminhar pelo inferno sozinho, perdido e de alma cansada, para vencer os nove círculos.
O amor, pra quem nunca teve, parece algo ridículo, para os que amam surge em certos momentos à estúpida necessidade de colocá-lo a prova. O amor não é palpável, mas existe como as incansáveis flores que insistem em levar uma única gota de orvalho da beleza, para onde não existe nada.
"Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces,
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei...
Tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada''.