terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Boca

O vento passa estreito pela janela quase completamente fechada, explode o som triste da brisa. Fiquei sem fôlego, afrouxo o sinto, solto o cadarço. A inspiração não vem. Se não crio não tenho ar.
Sozinho.
O vento outra vez. Agora misturasse à discreta sirene e o timbre vivo da voz do jovem inquieto do leito quatro. O diabético, o agricultor, o pescador poeta, o professor enfermeiro, o artista. Adormeço. Meus dedos acariciam a pele suave das costas. Desperto. Minha realidade. "Você não pode ser." To no limite, evitar a dor, evitar dolorir. Mereço mesmo a felicidade? Me peguei discursando utopias na enfermaria.
Mundo bom.
Disse o doente, cheio de esperança. Trocar peixe por poesia, parar um pouquinho só pra ver o Sol sumir na água, pegar o fruto no pé, plantar, nunca mais ter que matar.
Um cigarro, o ultimo Wiske e a boca mais bonita. Os dedos percorrem a pele suave das costas outra vez. Dorme aqui hoje, amanhã segue sem mim, aproveita o sol e se cuida. Tenho que dar o tapa na cara do pai. Te encontro depois em algum lugar da América, ou continuo sem nada. Hoje, somos só você e eu. 

O salvador

Hoje vi um louco de cristo, proclamando sem fé, clichês bíblicos, soou como poesia ou política, para a rasa compreensão dos consumidores vorazes do varejão dominical.
O que passa na sua cabeça?
Pensei comigo mesmo.
Em que momento esse homem sentiu que tinha que protestar.
Será que loucos são os que não param para ouvi-lo?
E se Deus fala com esse único solitário miserável?
Olha Maria, todos meus beijos são de verdade, minha saudade corta. Vamos ficar juntos pra sempre. Desculpa o dia que não fiz seu sanduíche de queijo. E quando dormi, porque não via nenhuma saída. Você sempre soube qual era a saída. É você. Eu estive acovardado,  agora temos o tempo pra recuperar, eu não tenho mais medo e vamos andar de cabeça erguida, como sempre andamos.
Salvador Dalí está na cidade, podemos ver os quadros e tentar desenhar um mundo parecido, que as regras são as nossas. 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Prece

A pequena cidade grande, seus sons, segredos e sonhos.
Os meninos, os explorados, os sem chance, as meninas.
A injustiça, a praça, a fonte, os escalpelados, os inocentes, as paradas de ônibus casa de lunáticos. 
Os que andam e os que atropelam, insanos do semáforo, da calçada, ossos quebrados que não curam, um hotel sem janelas nem portas, pútrido, as paredes e o piso, nele moram desesperados.
A chuva e o vento, no seu tempo, fazem o que querem.
Somos perfilados na faixas exclusivas rumo a extinção.
Demandas que não fazem sentido e a imaginação dos poetas da ala azul.
Vem o carnaval e suas delícias, burocratas fantasiados de bárbaros, ativistas educados pela TV, com medo trancados em seus quarto e sala.
Os livros empilhados na garagem do supermercado observados com desconfiança, nunca serão lidos.
Pára-brisas empapado pelas folhas do novo verão, opacas e com vergonha, como pequenos burgueses sem casa e ideologia.
Os velhos doces nos bancos das superquadras modelo, adestrados pra dizer não para o sonho e pro céu nu.
Nesse momento agonizam no terceiro andar, homens de pouca ética que desperdiçaram a coragem.
Esterilizado amor, segue na estrada asfaltada, plana e regular.
A história e seus lapsos, incoerências.
Que antes de morrer tenhamos o prazer da virtude dos revolucionários, porque perdão é fraqueza, não é amor, o que corrói mesmo é a culpa.
Onde está o bebê? O leite? A estratégia, o beijo que faltou na boca, o parágrafo sem virgula, os dentes amarelados do filho magoado, raivoso.
O paradigma secreto dos alcoólatras funcionais e seus planos espetaculares de viverem mais um dia.
As muitas mulheres que não foram amadas com a intensidade do deus moribundo.
"Pele e osso", suas últimas palavras, da mandíbula que se morde na angustiante espera do café ralo, amargo.
Nos corredores do hospital as preces são mais fervorosas e verdadeiras que nos templos religiosos.